segunda-feira, 31 de outubro de 2011
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
Uma crônica do velho Rubem Braga... uma das favoritas crônicas de Flavia
OS AMANTES
Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós dois esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender.
Mas o gesto era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando. Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado até que o aparelho silenciasse.
Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos era toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um estrondo distante de bondes, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador. Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos, quietos. Um segundo, dois - e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele - fosse quem fosse - nos lançaria um olhar, diria alguma coisa - e então o nosso mundo estaria invadido.
No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado, íamos emagrecendo de felicidade, devíamos estar ficando pálidos, e às vezes unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho; o relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas; mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos jamais.
Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois, e o milagre se repetia tão quieto e perfeito como se fosse ser assim eternamente.
Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar seus olhares, dizer suas coisas, ferir com sua maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais, nunca mais haverá.
***
No oitavo dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares de edifícios; que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho?
Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar. O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar; e assim três, quatro vezes sucessivas.
Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez, experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro. Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixassem em nossa felicidade que fuía num encantamento constante.
Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, se o cheiro da sua pele já tivesse entrado na minha. Nossos corpos tinham chegado a entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde se filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse "meu Deus, seus olhos estão esverdeando".
Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível, como um lento, lento bailado.
Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo estranho; que horas seriam?
Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos. Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago.
Houve um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho de jornal; voltei carregando aquele embrulho de encontro ao peito como se fosse a minha salvação.
E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido para compreender que o milagre acabara; alguém viera e batera à porta, e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo o recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu foi preciso atender, e o nosso mundo foi invadido, atravessado desfeito, perdido para sempre - senti que ela me disse isso num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo não os via assim, em plena luz), um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, havia uma inútil, resignada esperança.
Julho, 1952.
domingo, 23 de outubro de 2011
Algumas das minhas paixões e a minha pesquisa
Na semana passada estive em Londrina para participar do V Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História Social da UEL. Como muitos já sabem, este ano eu terminei, finalmente, o meu mestrado em História Social na UEL, no qual eu trabalhei com a interpretação de William Blake das transformações sociais que ocorriam na Inglaterra com a revolução industrial. O objetivo da minha participação no seminário de pesquisa foi comentar e trajetória e o resultado da pesquisa que resultou na minha dissertação. Participei de uma mesa redonda representando a linha de pesquisa "Cultura, Representações e Religiosidades" junto com outros dois ex-alunos do programa, o Gilberto da linha de pesquisa "Territórios do Político" e o Ademar da linha de "Ensino de História".
Não escrevi antes sobre o evento da UEL pois essa semana foi bem corrida, especialmente por conta da viagem pra Londrina. Saí de Sorocaba na segunda de manhã e voltei de Londrina no dia seguinte e quando cheguei só deu tempo de tirar um cochilo e ir pra escola dar aula. Enfim, passei a semana quebradona e pra ajudar ainda teve o início do horário de verão. Agora eu deixo aqui um pouquinho do que eu falei na UEL e alguns outros comentários sobre o trabalho que eu não fiz lá.
Há quem compare os trabalhos acadêmicos, seja monografia, dissertação ou tese, ao nascimento de um filho. Há um ditado popular também que diz que “ser mãe é padecer no paraíso”. Eu não tenho filhos, mas escrevi uma dissertação. E, se há alguma semelhança entre ter um filho e a produção de um trabalho acadêmico, levando em conta o ditado popular, esta semelhança é que é um trabalho difícil, muitas vezes sofrido, mas que fazemos com amor e que no final acaba sendo extremamente compensador.
Um aprendizado importante ao longo do meu trabalho foi o de que não há como desvincular a nossa pesquisa daquilo que somos. Os nossos interesses pessoais acabam orientando a escolha do tema, procuramos muitas vezes também refletir sobre as nossas próprias dúvidas e inquietações. A paixão acaba sendo muito presente em nosso trabalho, ainda que a historiografia exija uma certa distância, devido à natureza crítica que deve compor o nosso trabalho.
No meu caso, em particular, a poesia sempre foi uma paixão. O gosto pela poesia veio antes da graduação em história, que por fim, acabou se revelando uma nova paixão.Antes do projeto de pesquisa que buscou compreender a relação entre a poesia de William Blake e o seu contexto histórico, eu fui uma leitora e apreciadora da poesia do Blake. E, por isso, eu gostaria de dizer aqui como eu conheci William Blake. Bom, antes de contar como eu conheci o Blake, preciso dizer também que eu sempre fui fã do rock’n’roll, nas suas mais diversas vertentes. E, quando eu tinha por volta dos meus quinze anos uma das bandas que eu mais ouvia era “The Doors”. Um dia eu estava lendo uma biografia do Doors e li que a idéia do nome “The Doors” (que traduzindo seria “as portas”) veio de uma frase de um poeta chamado William Blake e a frase era a seguinte: “Quando as portas da percepção forem limpas, as coisas irão surgir como elas realmente são, infinitas”. Eu achei essa frase muito bonita e, então quis saber um pouco mais sobre esse tal William Blake.
Descobri então, que além de poeta, ele foi também gravador e depois de ver algumas das imagens feitas por ele, fiquei um pouco mais curiosa sobre o trabalho desse artista, pois as imagens também eram fascinantes.
O primeiro livro do William Blake que eu li, ainda na minha adolescência foi “O matrimônio do céu e do inferno” e, embora muito do trabalho nessa época tenha permanecido estranho para mim, gostei muito da série de aforismos intitulada “provérbios do inferno”. Algum tempo depois, encontrei numa livraria em Sorocaba, outro trabalho do Blake e outro também que está entre os mais lidos e comentados do poeta, “As canções da inocência e da experiência”. Depois de folhear o livro por alguns minutos, eu tive que comprar. Mal sabia eu o quanto esse trabalho ocuparia o meu tempo e o quanto ele se tornaria importante pra mim. Na introdução desse livro, escrita pelo tradutor, há alguns comentários sobre a vida, a obra e o contexto em que viveu William Blake. E sobre a relação entre a obra do Blake e o seu contexto histórico havia alguns comentários sobre a crítica feita por Blake à industrialização, a personagens presentes na sociedade industrial, que podemos perceber em poemas como “O limpador de chaminés” e “Londres”.
O tempo passou e, eu mais uma vez seguindo a paixão, vim pra Londrina estudar história. Em 2005, no segundo ano da minha graduação, logo no início do ano, eu reli “As canções da inocência e da experiência”. Então, me veio a idéia, por que não estudar a relação entre o trabalho do Blake e a sociedade industrial? Por que não fazer um projeto de pesquisa? E foi o que eu decidi fazer.
Com uma vaga idéia na cabeça e nada escrito no papel fui procurar quem poderia me orientar nessa empreitada. Foi então que soube que a professora Silvia Martins, que então era a nossa professora de História do Brasil, trabalhava com literatura, e fui conversar com ela:
- Quero trabalhar com a poesia do William Blake, gostaria de fazer um projeto de pesquisa estudando as críticas à sociedade industrial que estão presentes na poesia dele.
A Silvia achou a idéia interessante, e então perguntou:
- Você sabe inglês?
- Não o suficiente pra ler textos em inglês, mas eu aprendo. – Eu disse.
Silvia concordou em me orientar e assim começou a minha pesquisa sobre William Blake, que como todas as pesquisas, teve dificuldades a vencer e, no meu caso, estas dificuldades incluíram o fato de ter que aprender inglês. Esse meu projeto rendeu frutos que foram além da graduação, tornando-se também o tema do meu mestrado em História Social na UEL.
Agora, que já falei sobre como eu conheci o Blake e como começou minha pesquisa sobre ele, vou falar brevemente da biografia deste artista, porque assim como eu não me desvencilhei daquilo que eu sou pra escrever o meu trabalho, a arte de William Blake está profundamente vinculada à quem ele foi, e para relacioná-la à sociedade industrial eu parti dessa premissa.
William Blake nasceu em Londres, em 28 de novembro de 1757. William era o segundo, dos cinco filhos de Catherine e James Blake, pequenos comerciantes, que assim como o poeta se interessaram pelas dissidências protestantes que cresciam no século XVIII. Blake, foi poeta e gravador. A imaginação singular do artista se manifestou desde cedo através de “visões”, que mostraram muito de seu pensamento religioso, de suas concepções artísticas e de sua visão social.
Blake não recebeu uma educação literária formal, mas recebeu algum preparo como artista plástico, freqüentou um curso elementar de desenho e, por um breve período, a Academia Real de Artes (Royal Academy of Art’s Schools of Design). Blake foi classificado na academia como gravurista, trabalho que foi visto pelos membros da mesma como meramente reprodutivo e artesanal, diferente da pintura e escultura, que eram vistas como verdadeiramente criativas e artísticas.
Em 1782 Blake se casou com Catherine Boucher, a quem ensinou a ler, escrever e pintar. Catherine o auxiliaria posteriormente no lento e trabalhoso processo de elaboração de seus Illuminated Books (obras compostas de poesia e desenho ambos feitos e editados pelo autor).
Em 1785, Blake abandonou a academia sem concluir os seus estudos, alguns anos depois desenvolveu um método diferenciado de produzir gravuras, que o permitia fazer modificações nas placas prontas. Essas gravuras foram associadas aos seus poemas para produzir o que posteriormente foi chamado de Illuminated Books. Através destes trabalhos, Blake buscava afirmar a natureza criativa de sua obra, ao mesmo tempo em que superava as divisões de trabalho existente no mercado editorial. As “Canções da inocência e da experiência” fazem parte desse conjunto de obras.
Os trabalhos literários de Blake não foram muito conhecidos em vida. Ele trabalhou como gravador até pouco antes da sua morte, em 1827, devido a uma doença no fígado causada muito provavelmente pelos vapores nocivos que o artista inalou ao longo dos anos de trabalho como gravurista.
Bom, esta é uma parte das coisas que eu falei no seminário de pesquisa da UEL. Para encerrar eu digo aqui que Blake teve as suas paixões, pelo desenho, pela poesia, política e religião. Eu também tive as minhas paixões, e elas acabaram me levando a trabalhar com William Blake.
sábado, 22 de outubro de 2011
"Fatalismo Russo"
A ausência de ressentimento, a clarividência sobre o ressentimento – quem sabe se, em última análise, por elas devo também ser grato à minha longa enfermidade? O problema não é simples: há que ter feito a experiência a partir da força e também da fraqueza. Se algo em geral se deve objectar contra a doença, contra a fraqueza, é que nela o genuíno instinto da cura, isto é, o instinto de defesa e de combate, se enfraquece no homem. Não sabemos desembaraçar-nos de nada, não sabemos acabar seja com o que for, nada sabemos repelir – tudo nos fere. O homem e a coisa aproximam-se de modo obstrutivo, as vivências afectam-nos com demasiada profundidade, a recordação é uma ferida purulenta. Estar doente é também uma espécie de ressentimento. – Contra isto o doente tem apenas um grande remédio – dou-lhe o nome de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com que um soldado russo, para o qual é demasiado dura a campanha, se deita por fim na neve. Nada mais tomar em geral, não absorver em si seja o que for – não mais reagir... A grande razão deste fatalismo, que nem sempre é apenas a coragem para a morte, conservador da vida nas circunstâncias para ela mais perigosas, é a redução do metabolismo, o seu retardamento, uma espécie de vontade de hibernação. Alguns passos mais nesta lógica e tem-se o faquir, que dorme durante semanas num esquife... Porque o homem se esgotaria demasiado depressa, se em geral reagisse, então não reage: eis a lógica. E com nada mais ele se consome a não ser com os afectos do ressentimento. O despeito, a susceptibilidade mórbida, a impotência para a retaliação, a inveja, a sede de vingança, o que há de venenoso em cada sentido – eis decerto, para o esgotado, o modo mais desvantajoso de reagir: condiciona-se assim um rápido desgaste de energia nervosa, uma intensificação doentia de secreções nocivas, por exemplo, a bílis no estômago. O ressentimento é em si o que está proibido aos doentes – o seu mal: infelizmente, é também a sua tendência mais natural. – Isso foi o que entendeu muito bem aquele profundo fisiólogo, Buda. A sua "religião", que antes se deveria denominar higiene, para não a confundir com coisas tão lastimosas como o cristianismo, fez depender a sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar dele a alma – eis o primeiro passo para a cura. "Não é pela inimizade que se chega ao fim da inimizade, é pela amizade que se põe fim à inimizade...: eis o começo da doutrina de Buda – aqui não fala a moral, mas a fisiologia. – O ressentimento, nascido da fraqueza, a ninguém é mais nocivo do que ao próprio fraco – noutros casos, onde o pressuposto é uma natureza rica, um sentimento excessivo, um sentimento de que assenhorear-se é quase a prova da riqueza. Quem conhece a seriedade com que a minha filosofia empreendeu a luta contra os sentimentos de vingança e de simpatia até à doutrina da "vontade livre" – a luta com o cristianismo constituí apenas um seu caso particular – compreenderá porque é que aqui trago à plena luz a minha conduta pessoal, a minha segurança do instinto na prática. Nos momentos da décadence, interditava-os a mim como nocivos; logo que a vida se tornava de novo rica e assaz altiva, opunha-me a eles como abaixo de mim. Aquele "fatalismo russo", de que falei, emergiu em mim porque me ative tenazmente, ao longo dos anos, a situações, lugares, habitações, companhias quase insuportáveis, após me terem sido dadas por acaso – era melhor do que modificá-las, do que sentir que se poderiam modificar – do que contra elas se rebelar. Considerava então como mortalmente mau o que em semelhante fatalismo me perturbava e dele à força me despertava: - na verdade, isso era de cada vez mortalmente perigoso. – Considerar-se a si mesmo como um não querer ser "outro" – tal é em semelhantes circunstâncias a própria grande razão.
Friedrich Nietzsche em Ecce Homo, ao explicar "Porque sou tão sábio".
Pequenas tragédias cotidianas
Gente a coisa tá feia mesmo, vou contar um fato que aconteceu ontem a tarde. Estava indo dar aula, parei no sinal vermelho e, como é de costume na maioria das cidades, tinha um moço no sinaleiro fazendo malabaris. Nunca costumo dar nada pra ninguém, tipo... nem gorjeta, nem esmola, nem nada. Pensando nesse sentido, eu sou um coração de pedra, mesmo! Acontece que ando tão fodida que aquele cara me comoveu com seu talento, por isso juntei algumas moedas e dei pra ele. Nossa, será que você já parou pra pensar nisso? Olha só, tanta habilidade pra estar lá no sinaleiro, fazendo malabaris, torrando no sol forte em troca de algumas moedinhas. Fui solidária com ele, pois ando tendo a sensação de que desperdicei o meu tempo, e o meu talento também. Aquele moço poderia ser eu. Se eu soubesse fazer malabaris...
sábado, 15 de outubro de 2011
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
domingo, 9 de outubro de 2011
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
Tadinho do Napoleão
Para Josephine, em Milão
De Verona, em 13 de novembro de 1796
Já não te amo mais; pelo contrário, detesto-te. És horrenda, muito desajeitada, muito idiota, uma verdadeira Cinderela. Não me escreves nunca, não amas vosso marido; sabeis do prazer que vossas cartas lhe proporcionam e não lhe envias sequer meia dúzia de linhas de rabiscos ocasionais.
Então, o que fazes o dia inteiro, senhora? Que assunto de tanta importância ocupa teu tempo, impedindo-te de escrever a teu excelente amante? Que afeição sufoca e põe de lado o amor, o amor eterno e constante que lhe prometeste? Quem pode ser esse novo amante maravilhoso que absorve todos os seus instantes, tiraniza por inteiro teus dias e te impede de dar atenção a teu marido? Josefina, tem cuidado, uma noite dessas as portas se abrirão e eu estarei lá.
Em verdade, minha boa amiga, estou ansioso por não ter recebido notícias tuas; escreve-me depressa quatro páginas e diz aquelas coisas amáveis que enchem meu coração de sentimento e prazer.
Espero logo poder apertar-te em meus braços e fazer chover sobre ti um milhão de beijos ardentes como as chuvas abaixo do Equador.
BONAPARTE
Para Josefina, 1796
Não vivi um único dia em que não te amasse; não passei uma única noite sem te abraçar; não bebi uma única xícara de chá sem amaldiçoar o orgulho e a ambição que me forçam a permanecer longe do espírito que inspira minha vida. Em meio a meus deveres, quer eu esteja à frente do exército ou inspecionando os campos, minha amada Josefina domina meu coração, ocupa minha mente, preenche meus pensamentos. Se estou me afastando de ti à velocidade da torrente do Ródano, é somente para poder tornar a ver-te mais cedo. Se me levanto para trabalhar no meio da noite é porque isso pode acelerar alguns dias a chegada do meu doce amor. No entanto, em tua carta dos dias 23 e 26 de Ventoso, me tratas por vous. Aplica este tratamento a ti mesma! Ah, infeliz, como podes ter escrito uma carta tão fria! E ainda há esses quatro dias entre o 23 e o 26; o que fazias para deixar de escrever a teu marido?... Ah, meu amor, aquele vous, aqueles quatro dias me fazem ter saudade da minha anterior indiferença. Que se cuide o responsável! Possa ele, como punição e compensação, experimentar o que minhas convicções e as provas (que pesam em favor do teu amigo) me fariam vivenciar! O inferno não tem tormentos suficientemente grandes! Nem as fúrias têm serpentes suficientes! Vous! Vous! Ah, como estarão as coisas dentro de duas semanas? ... Meu espírito está pesado, meu coração está acorrentado e sou assombrado por minhas fantasias... Tu me amas menos, mas superarás a perda. Um dia não me amarás mais; pelo menos admite; então eu saberei o que fiz pra merecer esse infortúnio... Adeus, minha esposa: tormento, alegria, esperança e espírito inspirador da minha vida; a quem amo e temo, aquela que me enche de sentimentos ternos que me aproximam da natureza e de impulsos violentos e agitados como uma tempestade. Não te peço amor eterno nem fidelidade, mas simplesmente... verdade, honestidade sem limites. O dia em que disseres "te amo menos" marcará o fim do meu amor e o último dia da minha vida. Se meu coração fosse tão ignóbil que pudesse amar sem ser amado eu o faria em pedaços. Josefina! Josefina! Recorda o que algumas vezes te disse: a natureza me dotou de um caráter viril e decidido. Ela construiu o seu com renda e tecidos diáfanos. Deixaste de me amar? Perdoa-me, amor da minha vida, minha alma está sendo esquartejada por forças conflitantes.
Meu coração obcecado por ti, está repleto de medos que me deixam prostrado de infelicidade... estou perturbado por não poder te chamar pelo nome pessoalmente. Esperarei que tu o escrevas.
Adeus! Ah! Se me amas menos, nunca me terás amado. Nesse caso, serei bem digno de piedade.
BONAPARTE
P.S.: Este ano, a guerra mudou a ponto de ficar irreconhecível. Fiz com que distribuíssem carne, pão e forragem; minha cavalaria armada logo estará em marcha. Meus soldados mostram uma indescritível confiança em mim; só tu me és fonte de tristeza; só tu és a alegria e o tormento da minha vida. Mando um beijo para teus filhos, que deixaste de mencionar. Por Deus! Se o fizesses, suas cartas seriam meia vez mais longas. Então, os visitantes que se apresentassem às dez horas da manhã não teriam o prazer de te ver. Mulher!!!
Parte do livro:
"Cartas de amor de homens notáveis"
Editado por Ursula Doyle.
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
De José Régio, esse é um dos meus poemas favoritos
Esse não só é um dos meus poemas favoritos do José Régio como também tem muito a ver com a forma como ando me sentindo ultimamente. Estou procurando o livro "Poemas para Deus e o Diabo" se alguém encontrar por aí, por favor, me avise...
Poema do silêncio
Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.
Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.
Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!
Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...
O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!
Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.
Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!
Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.
Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!
Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...
Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...
Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.
sábado, 1 de outubro de 2011
Ciganidade
Quem me conhece sabe que eu adoro os filmes do Fellini. E, esses dias, estava me lembrando de um em especial, “A estrada da vida” (La strada). Numa outra vez que vi esse filme já havia pensado no que eu vou dizer agora, e vou dizer o por quê. Isso já faz uns dois anos mais ou menos, nessa época eu não sentia ter mudado tanto assim, mas vi que tudo ao meu redor havia mudado. As pessoas que eu conhecia e, que de certa forma, eram referência pra mim não estavam mais por perto, ou pelo menos não da forma como eu esperava que estivessem. E quando pensava sobre isso me sentia incomodada, me sentia sozinha também. É como se tudo ao meu redor começasse a ruir, e então eu fui tomada por uma súbita vontade de sair correndo. Crianças que nascem, pessoas queridas que se vão (algumas muito antes do esperado), casais que se formam, outros que se desfazem, trabalhos diferentes, dinheiro que vem e que vai, diferentes cidades para quem antes vivia tão perto.
E quem sou eu pra me incomodar com isso? Era só me lembrar da família e dos amigos pra saber que eu não estava sozinha e que em algum momento todos fomos tomados por esse “querer de volta”, pela vontade de abraçar pessoas e situações que foram embora. A esse sentimento chamamos saudade.
E será que a vida é isso mesmo? Esse louco desejo de permanência enquanto a natureza ao redor tende a desmoronar? Permanência! Seríamos nós apenas isso? Desejo de permanência. E é aí que eu me lembrei do Fellini e da “estrada”. Pra quem ainda não viu o filme, ele conta a história de uma moça pobre chamada Gelsumina (belamente interpretada por Giulietta Masina), vendida pela família a um homem que viajava numa carroça de cidade em cidade apresentando números de circo. O protagonista é um símbolo do homem bruto; ela é um símbolo da delicadeza. Ele a comprou e ela, portanto, passou a ser não apenas sua assistente, sua empregada, mas num sentido mais forte de posse, passou a ser também a sua mulher. Mas o que me marcou no filme foi uma cena na qual os dois viajantes param num convento para ali passar a noite. Ao chegarem lá acontece um diálogo entre a Gelsumina e uma das freiras do convento. A freira pergunta pra moça se eles vivem ali naquela carroça e ela responde que sim, pois eles têm tudo de que necessitam lá, como numa casa. A freira então pergunta se ela não se incomoda em viver viajando, sem se fixar em lugar algum e a moça então responde que não, que o trabalho do seu marido é assim mesmo e que ela o segue. Nesse momento a freira se lembra que elas não são tão diferentes assim afinal, pois ela também é obrigada a se mudar de convento a cada dois anos. Olha só, a freira seguia o seu marido, de forma semelhante à Gelsumina. Ela então diz algo muito interessante “o homem se apega demais, até mesmo à uma planta. Nós aqui no convento devemos nos mudar freqüentemente para não nos esquecermos do nosso verdadeiro lar, que é Deus”.
O homem se apega demais... Até mesmo a uma planta! Sim, é fortíssima essa capacidade de apego que o ser humano possui. A idéia presente no diálogo entre a freira e Gelsumina fez com que eu repensasse a idéia de vida enquanto desejo de permanência, pois esse desejo pode ser traduzido no puro apego capaz de trazer uma falsa sensação de segurança. A crítica ao apego faz com que nós pensemos em vida enquanto algo completamente oposto a isso. Vida é movimento. Vida é novidade, e para que o novo venha é preciso abandonar, é preciso abandonar-se.
Gelsumina e seu marido eram artistas circenses, viviam viajando e nos contam algo que os ciganos exemplificam através de seu comportamento. Parar é morrer, por isso os ciganos buscam continuamente afirmar a vida através do ato da mudança. Afirmar a vida, fugindo da morte. Movimento. Mudança. E o circo, o que tem a ver com isso tudo? Bom, o circo trata do fantástico. Mostra um homem com uma força extraordinária. Um trapezista que teria tudo pra cair, mas não cai, pode haver lá também uma contorcionista que domina seu corpo de forma incrível, ou então, um mágico desafiando os pontos comuns da nossa visão. O circo é isso, desafia todos os lugares comuns, para que não percamos a capacidade de nos maravilhar, ou talvez de estranhar, que as crianças possuem. É preciso se habituar às incoerências para verdadeiramente fazer parte deste mundo. É preciso fazer do absurdo parte do cotidiano. O circo traz novidade e por isso, pode ser integrado à nossa capacidade de movimento. O circo também ensina algo sobre a vida. Porque a grande verdade é que sem nenhum impulso exterior a gente se acomoda, a gente se acostuma, se apega, a gente morre.
Notas sobre a última semana de setembro
Muita coisa aconteceu nessa última semana e eu não pude vir aqui pra contar porque logo na segunda-feira fiquei sem o meu notebook que foi pra assistência técnica, o que me impossibilitou de escrever novos posts. Na última semana foi realizado aqui em Sorocaba o 21º Encontro Nacional da ANAMMA, que teve como tema "O Desafio das Cidades Sustentáveis". O tema me chamou muita atenção, é um assunto que me interessa bastante, mas a forma como foi abordado no encontro não foi muito crítica, e pra dizer a verdade não ouvi grandes novidades. Em primeiro lugar é preciso ressaltar o fato de que esse foi um encontro institucional, e não ativista.
Não assisti a todas as palestras do evento, mas o que vi e li sobre, foi mais que o suficiente pra formar a minha opinião. Contamos com a presença de um representante do ministério do meio ambiente no evento, e ele sequer mencionou a questão que tem inquietado os defensores do meio ambiente nos últimos tempos: o novo código florestal. Bom, esse foi só um exemplo. O fato é que nenhum representante de qualquer instuição pública falou das questões mais delicadas que dizem respeito ao seu trabalho. Por isso, não vou gastar mais linhas comentando sobre o encontro da ANAMMA.
Outro acontecimento da semana, reunião no Zoológico Municipal "Quinzinho de Barros" no qual foi discutida a questão da girafa. Apesar de nos encontrarmos no próprio zoológico e da imensa maioria lá ser a favor da girafa, com exceção de cinco pessoas incluindo eu, creio que foi bastante produtivo, pois conseguimos chegar a um certo acordo que precisa ser formalizado. Claro, que o ideal seria que zoológicos não existissem, que os animais vivessem em seu próprio ambiente, mas sabemos que hoje isso não é possível. Lutamos, portanto, por um tratamento mais digno para os animais que se encontram em cativeiro e para que o comércio desses animais não exista, pois eles não são produtos. Já disse isso anteriormente, e repito, se há tráfico de animais é porque há quem compre. Na reunião no zoológico, aqueles que eram a favor da vinda da girafa continuaram com a sua opinião, mas uma coisa mudou. Ficou o compromisso de que, se esses animais chegarem a vir pra cá, eles não serão comprados e também não devem ser capturados da natureza. Será feita uma pesquisa para saber se há algum zoológico que não apresenta mais condições de criar as girafas que possui, ou que se encontra com um número excedente desses animais. Se for assim, menos mal, agora esse compromisso precisa ser formalizado.
Falando ainda sobre a girafa, devo lembrar do documentário que será realizado pelo Instituto Cahon do qual faço parte e cuja idéia já mencionei no último post. O foco do documentário, no entanto, foi um pouco modificado devido aos acontecimentos da última semana, ao invés de ter como tema apenas a vinda da girafa para Sorocaba, falaremos de forma mais ampla dos problemas que envolvem o comércio de animais. Definido o tema, e as questões principais que pretendemos abordar, partimos para a realização!
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