sábado, 1 de outubro de 2011

Ciganidade


 Quem me conhece sabe que eu adoro os filmes do Fellini. E, esses dias, estava me lembrando de um em especial, “A estrada da vida” (La strada). Numa outra vez que vi esse filme já havia pensado no que eu vou dizer agora, e vou dizer o por quê. Isso já faz uns dois anos mais ou menos, nessa época eu não sentia ter mudado tanto assim, mas vi que tudo ao meu redor havia mudado. As pessoas que eu conhecia e, que de certa forma, eram referência pra mim não estavam mais por perto, ou pelo menos não da forma como eu esperava que estivessem. E quando pensava sobre isso me sentia incomodada, me sentia sozinha também. É como se tudo ao meu redor começasse a ruir, e então eu fui tomada por uma súbita vontade de sair correndo. Crianças que nascem, pessoas queridas que se vão (algumas muito antes do esperado), casais que se formam, outros que se desfazem, trabalhos diferentes, dinheiro que vem e que vai, diferentes cidades para quem antes vivia tão perto.
E quem sou eu pra me incomodar com isso? Era só me lembrar da família e dos amigos pra saber que eu não estava sozinha e que em algum momento todos fomos tomados por esse “querer de volta”, pela vontade de abraçar pessoas e situações que foram embora. A esse sentimento chamamos saudade.
E será que a vida é isso mesmo? Esse louco desejo de permanência enquanto a natureza ao redor tende a desmoronar? Permanência! Seríamos nós apenas isso? Desejo de permanência. E é aí que eu me lembrei do Fellini e da “estrada”. Pra quem ainda não viu o filme, ele conta a história de uma moça pobre chamada Gelsumina (belamente interpretada por Giulietta Masina), vendida pela família a um homem que viajava numa carroça de cidade em cidade apresentando números de circo. O protagonista é um símbolo do homem bruto; ela é um símbolo da delicadeza. Ele a comprou e ela, portanto, passou a ser não apenas sua assistente, sua empregada, mas num sentido mais forte de posse, passou a ser também a sua mulher. Mas o que me marcou no filme foi uma cena na qual os dois viajantes param num convento para ali passar a noite. Ao chegarem lá acontece um diálogo entre a Gelsumina e uma das freiras do convento. A freira pergunta pra moça se eles vivem ali naquela carroça e ela responde que sim, pois eles têm tudo de que necessitam lá, como numa casa. A freira então pergunta se ela não se incomoda em viver viajando, sem se fixar em lugar algum e a moça então responde que não, que o trabalho do seu marido é assim mesmo e que ela o segue. Nesse momento a freira se lembra que elas não são tão diferentes assim afinal, pois ela também é obrigada a se mudar de convento a cada dois anos. Olha só, a freira seguia o seu marido, de forma semelhante à Gelsumina. Ela então diz algo muito interessante “o homem se apega demais, até mesmo à uma planta. Nós aqui no convento devemos nos mudar freqüentemente para não nos esquecermos do nosso verdadeiro lar, que é Deus”.
O homem se apega demais... Até mesmo a uma planta! Sim, é fortíssima essa capacidade de apego que o ser humano possui. A idéia presente no diálogo entre a freira e Gelsumina fez com que eu repensasse a idéia de vida enquanto desejo de permanência, pois esse desejo pode ser traduzido no puro apego capaz de trazer uma falsa sensação de segurança. A crítica ao apego faz com que nós pensemos em vida enquanto algo completamente oposto a isso. Vida é movimento. Vida é novidade, e para que o novo venha é preciso abandonar, é preciso abandonar-se.
Gelsumina e seu marido eram artistas circenses, viviam viajando e nos contam algo que os ciganos exemplificam através de seu comportamento. Parar é morrer, por isso os ciganos buscam continuamente afirmar a vida através do ato da mudança. Afirmar a vida, fugindo da morte. Movimento. Mudança. E o circo, o que tem a ver com isso tudo? Bom, o circo trata do fantástico. Mostra um homem com uma força extraordinária. Um trapezista que teria tudo pra cair, mas não cai, pode haver lá também uma contorcionista que domina seu corpo de forma incrível, ou então, um mágico desafiando os pontos comuns da nossa visão. O circo é isso, desafia todos os lugares comuns, para que não percamos a capacidade de nos maravilhar, ou talvez de estranhar, que as crianças possuem. É preciso se habituar às incoerências para verdadeiramente fazer parte deste mundo. É preciso fazer do absurdo parte do cotidiano. O circo traz novidade e por isso, pode ser integrado à nossa capacidade de movimento. O circo também ensina algo sobre a vida. Porque a grande verdade é que sem nenhum impulso exterior a gente se acomoda, a gente se acostuma, se apega, a gente morre.   

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