terça-feira, 23 de setembro de 2014

O problema é a memória

               
          
              O problema é a memória, sempre a memória, que desperta sem convite, enquanto escovo os dentes, penteio os cabelos ou qualquer outra coisa. Não é só porque houve, um dia, algo fora do lugar, é porque ainda há. Derrubamos a casa ou sequer chegamos a construí-la? Eu, sem saber a resposta e com essa velha mania de consertar coisas, tento juntar os tijolinhos e por as paredes no lugar, mas qual parede? Eu me lembro apenas dos tijolos, muitos tijolos espalhados, do resto conheço apenas a ausência. Não dá pra fazer bolo de chocolate sem chocolate, você disse. É... tem razão, não existe chocolate, nem tijolos, eu acho. Talvez não exista nada de nada em lugar algum, mas o problema é a memória, sempre a memória, que teima em beber a água salgada e aumenta sua sede de foda-se sei lá mais o que! Não, não! Cansei de vê-la jogar seus desejos no meu colo, de ouvir o seu sussurro, de permitir que as suas frustrações venham me acariciar os cabelos ou que transforme a sua acidez em meus enjoos matinais, mas ela volta, sempre volta e traz você e todas as obviedades para as quais eu gostaria de fechar os olhos. Excluindo essas ocasiões eu geralmente fecho os olhos, viro o rosto ou digo: “Deixe quieto”... até chegar a hora da memória, então sinto nojo de você. Sinto culpa, muita culpa de quem pede o perdão antes de errar, pois sabe da inevitabilidade do erro. Perdão, Senhor, eu sei o que faço. Sei e faço como se ouvisse um suave “eu avisei”.
    Sinto a acidez do estômago constantemente e não apenas pela manhã, ao despertar do sono. Há alguns dias tomei um porre, vomitei até as tripas, eu acho, mas você não saiu de dentro de mim. Tomei um banho bem demorado e esfreguei o corpo todo com uma esponja, mas a sua marca ainda estava lá.                
   A autopiedade não me conforta. Você também não me conforta. Aprendi a amar o frio na barriga que sinto ao descer a montanha russa. Habituei-me à imprevisibilidade e à distância.  O seu silêncio guarda um mundo inteiro, um mundo que eu gostaria que estivesse em outro universo, não no nosso. Os olhos, contudo, transbordam o que a boca teima em esconder. Acho que não consigo mais varrer a sujeira para baixo do tapete. A solução, porém, é a memória, sempre a memória que insiste em lembrar de outras casas e outros tijolos e de casas que nem são feitas de tijolos e do sabor do chocolate, de outros chocolates, doces, amargos, brancos, recheados... Já fiz muito bolo de chocolate, alguns mofaram, outros eu comi até os farelos. O que eu posso garantir é que essas receitas uma hora acabam ou enjoam, pois esse tipo de desejo é fome e uma vez saciado ele deixa de existir. Não é a mentira, como dizem, mas sim o desejo que tem pernas curtas, é inescrupuloso e uma hora vai te derrubar. É preciso transcender, algo para o qual eu nem sei ainda dar o nome, mas existe, ou pelo menos já existiu se não me falha a memória. Tudo que posso dizer agora é que não sei mais se gosto de chocolates e que cansei de carregar tijolos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário