segunda-feira, 2 de abril de 2012

Eu e a "Juventude" de Ingmar Bergman




Acordei cansada hoje de manha. Fiz o que deveria fazer e então o dia passou. Poucas coisas me comovem atualmente. Não leio mais livros novos, não assisto a novos filmes, não faço novos amigos, não há expectativa. Faço o que devo fazer e daí o dia passa. Assim, a semana passa, então o mês e lá se vai mais um ano. Não, isso está errado, comecei pela superfície, devo começar a escrever dizendo que hoje estamos todos cansados por conta da repetição, esperança morta.
            A definição da expressão “de cor”, que temos atualmente, ensina que tudo que sabemos de cor é conhecido em detalhes que extravasam a memória vêm parar na ponta da língua. Saber de cor, pensamos, é repetir tudo igualzinho. A etimologia do termo, porém, nos diz algo um tanto diverso. Em latim saber de cor era saber “de coração”. Aí, podemos pensar que conhecemos algo muito bem quando o conhecimento é inseparável da alma, do coração. O coração é um órgão do corpo humano que nunca para de bater, e agora chegamos ao ponto delicado dessa história. Se o coração não para de bater, então o coração vivo insiste em levar o conhecimento envolto nele à memória. Funciona assim, posso dizer, quase mecanicamente. O coração bate, leva as informações para a memória e daí a gente para. Algumas dessas informações são compostas do lixo que habita dentro de ti. O lixo do corpo é jogado pra fora, pelas duas extremidades do aparelho digestivo, pelo sistema urinário, pelos poros e pode ser lavado no banho. O lixo do coração é jogado pra dentro, fica na memória e contamina a alma. O lixo de dentro corrói os seus planos, mina as suas esperanças, envelhece e faz morrer os sonhos. O lixo de dentro endurece os sentidos, dá um nó na garganta, sufoca, implode. O lixo é o freio. O lixo liga o piloto automático.
Eu poderia escrever milhares e milhares de páginas sobre o lixo, pois somos todos uma coleção de aterros sanitários com a capacidade saturada com o passar dos anos. Existe inclusive uma ciência para tratar do lixo chamada psicanálise. Psique anda de mãos dadas com Eros, nosso desejo, logo muito lixo na alma implica em problemas com o desejo. Vamos estender o significado de desejo além dos liames sexuais e os meus argumentos farão todo sentido numa vida brochante, tensa ou frustrada.
            Tratando um pouco desse tema Ingmar Bergman fez um filme chamado “Juventude”. Talvez Bergman não tenha pensado que o filme seja sobre isso, mas eu vejo desta forma. No filme Bergman retratou uma bailarina com seus 28 anos de idade, perto de se tornar uma mulher balzaquiana e encerrar sua carreira profissional. Ela vivia um dilema do tipo o que David Bowie canta na música rock’n’roll suicide, “You're too old to lose it, too young to choose it”... Velha demais para perder e jovem demais para escolher... podemos resumir assim o dilema da protagonista, um dilema que nos acompanha desde a adolescência, mas há um momento lá pelos seus vinte e poucos ou trinta anos em que isso acaba pesando mais. É um dilema saturnino, que cobra conquistas com a passagem do tempo, e tanto mais pesada será a cobrança quanto mais a vida se afastar da linha reta.
O dilema da protagonista, porém, só vem a tona quando ela recebe um diário que a obriga a revirar o lixo da alma. Era o diário do seu primeiro namorado, o primeiro e talvez o último a quem ela realmente amara, com ele havia planejado uma vida em linha reta que foi bruscamente interrompida pelo acidente que o matou. Logo após o trágico incidente o tio da moça a aconselha a construir uma fortaleza ao redor de si e não deixar que nada a destrua. É o que a moça faz, torna-se uma fortaleza e dedica-se exaustivamente ao trabalho. Ela passou a ser uma estrutura rígida sobre pés inquietos que dançavam freneticamente e, sem que percebesse, o tempo passou. Agora, ela não podia mais permanecer indiferente ao tempo, e o diário trazia a tona o lixo com uma mensagem. Não havia mais amor. Em breve, também não haveria mais balé. Não havia nada de nada em lugar algum. No interior daquela fortaleza havia um saco plástico vazio, flutuando no vento e, no mais, apenas lixo, contudo ela não ousava atravessar a casca rígida, apenas revolvia o passado. Ela não podia voltar, então calava as suas angústias. Por outro lado ela evitava se envolver com o que ou quem quer que seja no presente, por isso também não poderia seguir adiante. Com isso, apenas uma solução poderia ser apontada. A bailarina tem que aprender a perdoar e, antes disso, perdoar-se, para então despida, adormecer e sonhar. Abandonar-se para viver, eis a dádiva do esquecimento.

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