terça-feira, 10 de abril de 2012
Houve um tempo
Não quero desmerecer tudo o que eu tenho hoje, não vou diminuir o meu tempo e todas as coisas que com ele se apresentam, todas as pessoas que o acompanham, mas é fato que houve um tempo. Houve um tempo em que a porta da minha casa vivia aberta. Nesse tempo havia vários amigos, ou pelo menos um com quem eu poderia conversar. Os amigos também tinham tempo, era o nosso tempo, sabe? Era aquele tempo de ser moça, de passar horas arrumando o cabelo e fazendo as unhas da mão e do pé, de falar sobre um cara com uma amiga, de ficar feliz ouvindo o telefone tocar. Era o tempo de final de semana, de voltar pra casa com os pés doloridos e a maquiagem derretida, de ouvir música boa, dançar e tomar cerveja barata. Eu fazia um milhão de planos e acreditava numa vida em linha reta e, pra meu grato espanto, não apenas eu, como também a maioria das pessoas ao redor acreditava nisso tudo, porque eu sabia como ninguém fazer da minha vida uma promessa.
Eu tinha a certeza de que o mundo era um lugar incrível. Um dia eu vi o céu cor de laranja de manha, não me pergunte como isso foi possível, não entendo nada de ciência, mas eu vi. Eu tive a sorte de conhecer pessoas estranhas, confie em mim, são as melhores pessoas que existem e com elas é possível descobrir um mundo único. Eu lia uma série de livros e acreditava na sinceridade de seus autores: J. D. Salinger, George Orwell, Lewis Carrol, Aldous Huxley, Albert Camus, William Blake, P. B. Shelley, John Keats, Lord Byron, Walt Whitman, James Joyce, Emily Dickinson, Rimbaud, Marcel Proust e muitos outros. Eu acreditava que as boas leituras poderiam salvar as pessoas e uma discografia interessante também. Eu gostava de caminhar no final da tarde e tinha paciência. O tempo passava devagar, o que não tornava os meus dias monótonos, pois mesmo no centro do cotidiano havia uma novidadezinha qualquer, uma besteira pra rir, um sei lá o que.
Agora tudo isso se perdeu. Amadureci, eu acho, e quem diz que isso é bom muito se engana, pois é tudo besteira de gente amarga que quer se dizer importante e não quer admitir ser ínfima e sem graça. Quanta tolice chamar de ingenuidade a fé em si mesmo e no futuro, a crença no extraordinário. É triste pensar no quanto perdemos ridicularizando a juventude, no quanto tentamos fazer da passagem do tempo um imperativo categórico da frustração e da chatice. Agora eu não sei de mais nada, não acredito em mais nada e ainda penso que posso ensinar alguém por ter um mínimo a mais de experiência. Ensinar o que, afinal de contas? A desconfiança, o tédio e o cansaço talvez. Tenho o dever de dizer tudo isso porque houve um tempo, aquele tempo de certezas, de teimosia e esperança. Houve um tempo, não tão distante desse aqui, e nesse tempo, eu fui muito feliz. segunda-feira, 9 de abril de 2012
Somos quem podemos ser
Minha tristeza tem uma origem que se for estritamente examinada,Em 1802 William Blake escrevia estas palavras em uma carta endereçada a seu patrono Thomas Butts, para dizer o quanto ele se sentia limitado por ter que trabalhar como gravurista comissionado e não ter tempo para trabalhar em seus próprios projetos artísticos. Com o objetivo de ultrapassar as limitações econômicas e afirmar a sua obra como genuinamente artística, William Blake criou os Illuminated Books, obras compostas por poesias e desenhos, feitos pelo próprio autor em chapas de metal e depois transpostos para o papel. Com esses trabalhos ele superava as divisões existentes no mercado editorial entre o trabalho do escritor, do tipógrafo e do gravador. É importante lembrar que as imagens não eram apenas ilustrações para os poemas, mas dialogavam com eles para construir diferentes significados. Blake também costumava alterar a ordem dessas chapas, assim como inseria diferentes poemas e imagens nas diferentes cópias dessas obras e, como cada cópia é única, logo não existem cópias, mas sim, diferentes versões do trabalho de Blake, diferentes obras.
pode prejudicar a minha condição financeira. Como eu dependo da
Gravura no presente, [...] Eu encontro por todos os lados objeções
para fazer qualquer coisa além da simples servidão aos negócios &
as intimações de que se eu não me limitar a isso eu não viverei.
Esta idéia sempre me perseguiu.
Criar! Eis o significado da arte para William Blake, e ele viajou com essa proposta até os lugares mais inóspitos da fantasia, criando uma série de personagens que chegam a formar uma mitologia completa, intitulada pela crítica de "mitologia blakeana". Hoje, reconhecido como um dos maiores artistas de seu tempo, que inclusive atuou e foi reconhecido em diferentes áreas como a poesia e a pintura, o talento de William Blake permaneceu praticamente ignorado por seus contemporâneos. Blake viveu como gravador, produzindo ilustrações sob encomenda para o mercado editorial. A gravura, naquele tempo, passou a ser classificada como um trabalho meramente reprodutivo, por ser feito a partir de uma figura pronta e gerar diversas cópias, algo totalmente diverso da arte genuína e única, a pintura. William Blake frequentou a Academia Real de Artes, mas sendo um gravurista não poderia se tornar um membro pleno, privilégio concedido aos pintores, vistos como os verdadeiros artistas. Blake chegou a expor alguns trabalhos, que foram vistos pelos críticos como grosseiros, algo totalmente distante da arte clássica em voga. A Academia virou as costas para William Blake, então ele também virou as costas para a Academia. É como se ele dissesse, e não consigo encontrar expressão melhor que essa grosseira, "foda-se se vocês pensam que isso que eu faço não é arte, eu vou continuar fazendo mesmo assim e vou fazer muito melhor do que vocês". Enquanto os grandes artistas diziam que Blake não era nem criativo e nem talentoso, ele dizia ao mundo "eu sou, vocês é que não são". Isso é louvável, posso dizer, mas custou caro. Sua imaginação e gostos peculiares fizeram com que o artista andasse a vida toda lado a lado da pobreza, por isso a arte que ele amava e queria produzir, entrava em conflito com as necessidades de sobrevivência e as gravuras comissionadas. O dever e o desejo sempre em conflito. E nós? Quantos de nós talvez não vivamos como William Blake? Quando você era criança, o que você queria ser quando crescesse? E o que você se tornou? Quando você está sozinho no seu quarto a noite, por um acaso tem um rolo compressor no peito dizendo pra você o que deve fazer no dia seguinte? Quantas vidas são desperdiçadas em nome da necessidade, do tempo e do espaço? Como resposta a esse conflito Blake nos apresentou uma prece. Sua obra é capaz de compor uma prece libertadora feita em nome da imaginação. Que a imaginação nos tome, nos salve e nos leve para bem longe daqui, por amor ou caridade. Amém!
segunda-feira, 2 de abril de 2012
Eu e a "Juventude" de Ingmar Bergman
Acordei cansada hoje de manha. Fiz o que deveria fazer e então o dia passou. Poucas coisas me comovem atualmente. Não leio mais livros novos, não assisto a novos filmes, não faço novos amigos, não há expectativa. Faço o que devo fazer e daí o dia passa. Assim, a semana passa, então o mês e lá se vai mais um ano. Não, isso está errado, comecei pela superfície, devo começar a escrever dizendo que hoje estamos todos cansados por conta da repetição, esperança morta.
A definição da expressão “de cor”, que temos atualmente, ensina que tudo que sabemos de cor é conhecido em detalhes que extravasam a memória vêm parar na ponta da língua. Saber de cor, pensamos, é repetir tudo igualzinho. A etimologia do termo, porém, nos diz algo um tanto diverso. Em latim saber de cor era saber “de coração”. Aí, podemos pensar que conhecemos algo muito bem quando o conhecimento é inseparável da alma, do coração. O coração é um órgão do corpo humano que nunca para de bater, e agora chegamos ao ponto delicado dessa história. Se o coração não para de bater, então o coração vivo insiste em levar o conhecimento envolto nele à memória. Funciona assim, posso dizer, quase mecanicamente. O coração bate, leva as informações para a memória e daí a gente para. Algumas dessas informações são compostas do lixo que habita dentro de ti. O lixo do corpo é jogado pra fora, pelas duas extremidades do aparelho digestivo, pelo sistema urinário, pelos poros e pode ser lavado no banho. O lixo do coração é jogado pra dentro, fica na memória e contamina a alma. O lixo de dentro corrói os seus planos, mina as suas esperanças, envelhece e faz morrer os sonhos. O lixo de dentro endurece os sentidos, dá um nó na garganta, sufoca, implode. O lixo é o freio. O lixo liga o piloto automático.
Eu poderia escrever milhares e milhares de páginas sobre o lixo, pois somos todos uma coleção de aterros sanitários com a capacidade saturada com o passar dos anos. Existe inclusive uma ciência para tratar do lixo chamada psicanálise. Psique anda de mãos dadas com Eros, nosso desejo, logo muito lixo na alma implica em problemas com o desejo. Vamos estender o significado de desejo além dos liames sexuais e os meus argumentos farão todo sentido numa vida brochante, tensa ou frustrada.
Tratando um pouco desse tema Ingmar Bergman fez um filme chamado “Juventude”. Talvez Bergman não tenha pensado que o filme seja sobre isso, mas eu vejo desta forma. No filme Bergman retratou uma bailarina com seus 28 anos de idade, perto de se tornar uma mulher balzaquiana e encerrar sua carreira profissional. Ela vivia um dilema do tipo o que David Bowie canta na música rock’n’roll suicide, “You're too old to lose it, too young to choose it”... Velha demais para perder e jovem demais para escolher... podemos resumir assim o dilema da protagonista, um dilema que nos acompanha desde a adolescência, mas há um momento lá pelos seus vinte e poucos ou trinta anos em que isso acaba pesando mais. É um dilema saturnino, que cobra conquistas com a passagem do tempo, e tanto mais pesada será a cobrança quanto mais a vida se afastar da linha reta.
O dilema da protagonista, porém, só vem a tona quando ela recebe um diário que a obriga a revirar o lixo da alma. Era o diário do seu primeiro namorado, o primeiro e talvez o último a quem ela realmente amara, com ele havia planejado uma vida em linha reta que foi bruscamente interrompida pelo acidente que o matou. Logo após o trágico incidente o tio da moça a aconselha a construir uma fortaleza ao redor de si e não deixar que nada a destrua. É o que a moça faz, torna-se uma fortaleza e dedica-se exaustivamente ao trabalho. Ela passou a ser uma estrutura rígida sobre pés inquietos que dançavam freneticamente e, sem que percebesse, o tempo passou. Agora, ela não podia mais permanecer indiferente ao tempo, e o diário trazia a tona o lixo com uma mensagem. Não havia mais amor. Em breve, também não haveria mais balé. Não havia nada de nada em lugar algum. No interior daquela fortaleza havia um saco plástico vazio, flutuando no vento e, no mais, apenas lixo, contudo ela não ousava atravessar a casca rígida, apenas revolvia o passado. Ela não podia voltar, então calava as suas angústias. Por outro lado ela evitava se envolver com o que ou quem quer que seja no presente, por isso também não poderia seguir adiante. Com isso, apenas uma solução poderia ser apontada. A bailarina tem que aprender a perdoar e, antes disso, perdoar-se, para então despida, adormecer e sonhar. Abandonar-se para viver, eis a dádiva do esquecimento.
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