quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Nós também estamos lá fora


No dia 27 de agosto foi realizado aqui em Sorocaba o Fórum Regional Sobre Direitos dos Animais, no qual se discutiu o tema da Antivivissecção (pensamento que se opõe ao uso de animais vivos em testes para indústria e em experiências para o ensino e pesquisa nas universidades). Uma das palestrantes foi a Dra. Odete Miranda, que é médica e professora da Universidade do ABC, na qual não se utilizam mais animais vivos nas aulas do curso. A Dra. mostrou métodos substitutivos para o uso de animais vivos com o objetivo de ensinar. Uma das questões colocadas na palestra da Dra. Odete em defesa do uso apenas de animais mortos (conservados por certa solução química) durante as aulas foi a de que trabalhar com animais vivos no curso de medicina é parte do processo que torna o médico um homem indiferente à dor. Afinal de contas, quando ele realiza qualquer procedimento em um animal, seja um cachorro, um rato, um coelho ou qualquer outro, este animal representa, naquele momento, o seu paciente. É fato que o animal, assim como seu paciente, sente dor e sangra, pois é um ser vivo também. Através destas lições o médico aprende então, não apenas como proceder em relação ao corpo de seu paciente no tratamento de uma determinada doença, aprende também a esquecer um determinado sentimento humano: a empatia. É nesse momento que o “homem” deixa de existir e passa a ser o “médico”, passa a ser distante. Esta distância que é capaz de torná-lo insensível em relação à dor do animal durante o seu aprendizado, também é capaz de torná-lo insensível em relação ao seu paciente. A distância da dor pode levar o médico a, por exemplo, diferenciar os seus pacientes de acordo com a condição econômica. Pode levá-lo a não se importar com o infindável número de pessoas que aguardam horas (sentindo dor) pelo atendimento médico nas filas dos hospitais públicos. Você pode não gostar de animais, mas não quer que o seu médico o trate como um animal, principalmente como um de laboratório, não é mesmo? É nesse ponto que começamos a perceber a ligação entre coisas que aparentemente não tinham nada a ver.



Creio que a astronomia, ou melhor, a história da astronomia tem muito a nos ensinar nesse sentido. O astrônomo Johannes Kepler (1571-1630) utilizando dados disponibilizados por Tycho Brae (1546-1601) mostrou de forma muito precisa para a época em que viveu que a órbita dos planetas que compõem o sistema solar não era circular, como supunha o pensamento de Aristóteles, mas sim, elíptica. A descoberta de Kepler foi fundamental para que Isaac Newton (1643-1727) formulasse o seu pensamento sobre a gravidade. Mas, por que estes homens observavam continuamente e cuidadosamente o céu? Certamente, Kepler não observou as estrelas sabendo o que iria encontrar, e Newton também não. As descobertas vieram depois. A motivação de olhar para o céu veio antes. Penso que essa motivação, ou seja, a ligação entre o céu e a Terra, possa ser esclarecida se tivermos em mente que no tempo em que os astrônomos citados viveram a distinção entre a astronomia e a astrologia não era ainda tão rígida quanto nos dias atuais. Tanto Kepler quanto Newton não foram apenas astrônomos, como também foram astrólogos. Os astrólogos olham para o céu porque querem encontrar nele um pedacinho de si mesmos aqui na terra. Os astrólogos se lembram continuamente de algo que a maioria de nós esquece com facilidade, lembram-se de que nós também estamos lá fora. Kepler e Newton olhavam as estrelas porque buscavam algo aqui na Terra.

 
Por um motivo semelhante ao dos astrônomos, e ao dos astrólogos, é que agem outros profissionais. Os antropólogos, por exemplo, estudam outros seres humanos através da sensação de estranhamento. Talvez, ao observar os costumes de outro povo, tido pelos ocidentais como “exótico”, e aproximá-lo de si, da sua forma de agir e de pensar, o antropólogo passe não só a compreender o outro, mas a estranhar a si mesmo. Então, o cientista conhece, por intermédio do diferente, uma parcela de si que até então permanecera obscura. É aí que o antropólogo descobre que ele também está lá fora.

 

Os historiadores também olham outros homens com a sensação de estranhamento, olham para aqueles que vieram antes de si, muitas vezes conversam com os mortos e procuram ouvir os seus segredos. A natureza de seu ofício pode levar algumas pessoas a perguntar: “Ah, historiador, por um acaso a sua vida cotidiana já não lhe ocupa muito tempo? Por que é que você resolve olhar para trás, para outro tempo que não seja o seu? Porque conversa com os mortos e o que eles têm a lhe ensinar?”. E os historiadores podem responder que estão presos ao seu próprio tempo, às inquietações que nenhum contemporâneo é capaz de responder de forma satisfatória e, por isso, buscam através dos que vieram antes deles a resposta para seus próprios problemas. Nas diferentes atitudes, pensamentos e relações humanas em diversos lugares e temporalidades os historiadores encontram fragmentos de si mesmos. Eles sabem que desejamos ver algo além de nós mesmos, mas tudo que existe ao nosso redor torna-se, afinal, um espelho.
Os médicos deveriam aprender um pouco com estes profissionais, com os astrônomos, astrólogos, antropólogos e historiadores. Aliás, todos nós deveríamos aprender algo com estes ofícios: Nós também estamos lá fora.  

5 comentários:

  1. Belíssimo texto, Flávia! A busca pela reflexão do "eu" através do "outro" é absolutamente fantástica! Cxomo poderei saber quem sou eu, senão através daquilo que eu não sou? vejo quem sou através dele, mas, ao mesmo tempo, sou capa de reconhecer que temso traços em comum e que, eles junto comigo, também podem ser "nós".

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  2. "Uma das questões colocadas na palestra da Dra. Odete em defesa do uso apenas de animais mortos (conservados por certa solução química) durante as aulas foi a de que trabalhar com animais vivos no curso de medicina é parte do processo que torna o médico um homem indiferente à dor".

    Realmente. Tais práticas provocam a banalização dos sentimentos, das sensações do outro. È um exercício constante, na verdade, em qualquer profissão. O distanciamento não é algo completamente negativo, porque se o médico se deixar afetar por todas as dores, medos e perdas de seus pacientes ele mesmo sucumbe, adoece. Mas, a banalização completa é também prejudicial, porque o outro está ali, sentindo, não é um objeto, mas, um ser vivo, que pulsa, que sente. E isso jamais deverá ser desconsiderado.

    Os absolutismos é que são prejudiciais. Eu preciso me desvencilhar dessa palavra... rs

    Parabéns pelo blog! Seguidora, a partir de agora!

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  3. ei, flávia, gostei do texto. essa inquietação em relação aos saberes contemporâneos a respeito do homem e a ideia de que também estamos lá fora são assuntos reiteradamente presentes nos debates filosóficos de nossa era.
    discordo, porém, do argumento da professora para justificar sua crítica quanto à utilização de animais vivos nos laboratórios científicos do ensino: "Esta distância que é capaz de torná-lo [o médico] insensível em relação à dor do animal durante o seu aprendizado, também é capaz de torná-lo insensível em relação ao seu paciente. A distância da dor pode levar o médico a, por exemplo, diferenciar os seus pacientes de acordo com a condição econômica".
    Primeiramente, há uma diferença de perspectivas. O doente que sofre nos corredores dos hospitais deveria perceber que o início do embuste em relação a falta de um leito no hospital é de responsabilidade da gestão pública de saúde e não do médico, que nessas condições é um mero funcionário. Não estou com isso descartando a indiferença arrogante de tantos médicos na lida com os pacientes atendidos pelo SUS, ou mesmo de planos de saúde.
    Também não acho tão simples relacionar a insensibilidade do médico com seus pacientes ao estudo com animais vivos. A pergunta que eu faria seria: por que não fazemos isso com bebezinhos órfãos, fetos abortados etc e tal? Sim, a pergunta é horripilante, mas talvez assim algumas pessoas (não só os médicos) se sensibilizem com o tratamento humano dado aos demais animais do mundo, especialmente esses que são criados para servirem de cobaia e, em seguida, sacrificados. mas não seriam os porcos que vivem em cativeiro por toda sua vida apenas para produzirem uma carne mais macia aos dentes humanos tão sacrificados quanto os animais de laboratório? e os frangos que passam dia e noite com a luz acessa para terem seu crescimento acelerado e, assim, aumentar os lucros dos granjeiros.
    penso que a cotidiano hospitalar de um médico, ou seja, sua prática, é a grande produtora de insensibilidade em muitos desses profissionais. experimente passar uma semana como um médico, atendendo as desgraças mais terríveis, encarando a morte diariamente. o distanciamento é também uma defesa psíquica.

    mas, e foi para isso que eu vim fazer esse comentário, gostei da sua reflexão sobre o conhecimento astrológico e astronômico e sobre os muitos ensinamentos que esses cientistas têm ainda para nos falar. tem um livro do gaston bachelard "a formação do espírito científico" muito bom sobre isso. dá uma olhada.

    mas acho que o antropólogo e o historiador também correm o mesmo risco de insensibilização do médico. o exótico pode provocar nesse pesquisador a percepção de sua própria estranheza, mas pode também ser alvo de críticas culturalistas.

    enfim, gostei muito do debate que você propôs.
    abraço
    maria

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  4. Oi Maria, bom eu concordo com você quando diz que o problema do atendimento médico é maior que o próprio médico, é sim parte do problema de todo um sistema de saúde e o mesmo poderia ser dito em relação ao sistema de educação pública que apresenta problemas muito maiores que a relação professor-aluno. Mas o uso de animais nos laboratórios pode também ser considerado parte da formação do pensamento do médico em relação à vida. Penso também que os animais criados para o abate sejam parte da relação homem-animal e uma questão possível de se pensar através da nossa relação com o diferente é o nosso especismo. Também acho que o trabalho do antropólogo e do historiador pode gerar críticas culturalistas, mas a percepção da estranheza é muito mais interessante. Vou procurar o livro que você me indicou.

    Abraços,
    Flavia

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  5. Lilian, continue visitando o meu bloguinho, vou tentar atualiza-lo com mais frequência!

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