Em uma de suas obras, William Blake retratou a
tentação e queda de Eva. O artista, conhecido por sua fantástica imaginação e
pelas peculiares concepções religiosas, interessou-se bastante pelas
dissidências protestantes que se multiplicaram a partir do século XVIII. Não
vou apresentar aqui o pensamento de cada uma delas, mesmo porque o meu objetivo
aqui não é discutir o pensamento religioso em si mesmo, mas sim algumas das
representações da queda de Adão e Eva do paraíso na arte.
Observando a imagem de William Blake e a sua
simbologia, percebemos que ela não está distante das representações da maior
parte das religiões Cristãs quanto ao evento. Nelas, toda a origem do mal neste
mundo é atribuída à mulher e, posso ir mais longe ainda, dizendo que é
atribuída ao corpo da mulher, o corpo que se alimenta do fruto proibido e se
rende à sensualidade. Eis a origem, não do mal, mas sim da misoginia. William
Blake, artista conhecido também por um pensamento libertário, inclusive no que
se refere ao corpo e à sensualidade, vide sua obra ícone O Matrimônio do Céu e do Inferno, tomou elementos dessa
interpretação clássica do cristianismo quanto à queda do Paraíso e à mulher. Na
imagem, observamos que Adão, um símbolo da fé, está de costas para o
observador, enquanto Eva, com a serpente sensualmente envolta em seu corpo,
prova do fruto proibido diretamente da boca diabólica do animal. É possível
dizer que Blake quis passar a mensagem de que o pecado só poderia triunfar
enquanto a fé estivesse adormecida. Em outra das imagens de Blake, Adão é
mostrado “literalmente” dormindo. Continuando com algumas das interpretações da
cristãs, podemos dizer que Eva, aquela curiosa que provou do fruto proibido,
dissimulada e malvada que era (ou tornou-se), enganou o pobre e fiel Adão, que
provou do tal fruto proibido.
Ok, esta é a interpretação clássica, mas não é a
definitiva, pois os artistas, estes homens abençoados que são, negam
peremptoriamente o que é definitivo. John Milton, no seu épico Paraíso Perdido traz uma visão
diferente, digo, muito mais humanizada da coisa toda. A obra não trata apenas
da queda da humanidade, mas também das disputas entre o céu e o inferno, ou
indo além, da luta entre um anjo rebelde e a tirania de um senhor absoluto. Não
é de se estranhar que Milton, o poeta puritano, tenha vivido à época da
Revolução Gloriosa na Inglaterra e tenha participado ativamente dela, ele foi
secretário do conselho da Commonwealth.
E os homens, como é que ficam no meio dessa
história toda? Voltemos a pensar sobre estes elementos: Adão, Eva, fruto
proibido, serpente, pecado, ira divina. Eva fora atraída pela promessa da
serpente de que conseguiria poderes sobrenaturais e seria adorada pelos anjos
caso provasse do fruto, mas logo após prova-lo sente um medo imenso do que
poderia acontecer a ela. Morreria? Deixaria Adão só no Paraíso? Ele viveria
então, feliz, com outra mulher? Tomada pela dúvida e pela sensação de culpa,
Eva conta ao seu companheiro o que havia acontecido e o culpa por deixa-la
sozinha vagando pelo Paraíso, não fosse isso nada daquilo teria acontecido. Ao
ouvir a história toda, Adão sabe o quão grave foi a atitude de sua mulher, sabe
também que a ira divina seria inevitável, e toma uma atitude cavalheiresca. Ele
não foi curioso, não foi enganado, não estava adormecido quando a coisa toda
aconteceu, ele sentiu compaixão. Despiu-se de todo orgulho e qualquer
sentimento egoísta que pudesse ter, pois sabia que ele mesmo poderia ter
pecado, então consciente, ele também provou o fruto proibido. Adão renunciou ao
Paraíso e escolheu sofrer todas as dores do mundo ao lado de sua companheira,
ao invés da tristeza de uma vida solitária no Paraíso. A partir daí a inocência
foi perdida, e ambos descobriram a dor, a doença, a morte, o sofrimento, a
angústia. Contudo, lembrando a história da caixa de Pandora, restava algo
semelhante à esperança. Com a queda, eles descobriram não apenas todas as
mazelas da humanidade, mas também a solidariedade, a caridade, a compaixão e o
amor. Foi a descoberta do amor que tornou Adão, enfim, Homem.